Que meus filhos e netas recordem o meu amor pela escrita! Afinal as histórias são feitas para serem partilhadas. Só assim elas se propagam e se perpetuam...

sábado, 4 de outubro de 2014

É ESTE O MEU MUNDO.

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Estou perdendo com a idade, os dentes, os cabelos, a visão que já se turva, a pele firme e clara que tinha.

Crio sobre o lábio superior rugas, em volta aos olhos mais profundas, caem-me as peles das faces que teimam manter-se agarradas fazendo sulcos profundos, as mãos afiladas cobrem-se de manchas escuras, pequeninas como sardas mas aos poucos vão cobrindo todo espaço.

Doem as costas já curvadas, as pernas já de si cansadas, teimam em ficar sentadas.

Olho a janela pela manhã, e o sol brilha tal e qual como antigamente, mas cá dentro está nebuloso, ou será da minha vista já cansada.

Abro o roupeiro de cheiro a naftalina, que protege lindos vestidos de outrora, e procuro um bem largo e comodo que não me tolha os movimentos ao subir ou descer, e que não me incomode com apertos.

Pelas costas apesar de verão, coloco um xaile ou um casaco que me acomoda dum frio que não existe mas que sinto.

Calço aqueles sapatos já deformados, mas que não me trilha os pés nem incomoda os joanetes que teimam em fazer-me companhia.

Olho o espelho outrora lindo de cercadura dourada, também já lascada pelos anos.

Devolve-me um rosto triste e um cabelo esbranquiçado que penteio devagar que o tempo é longo.

No rosto nada de pinturas, apenas um creme que não deixe o sol ou o ar queimar-me.

Atravesso a sala passo pelo meu retrato em cima do piano, ainda jovem linda de sorriso nos lábios e braços longos como se abraçasse o mundo.

Não me reconheço mas sorrio sempre como se uma companheira me esperasse diariamente dando-me os bons dias.

Ao lado a foto de um jovem de olhos cor de mel, louro que já me partiu, pego nele e beijo docemente dando os bons dias como se ali estivesse presente.

Vou balbuciando palavras de amor perdidas no tempo como se ele me ouvisse.

Desço as escadas até á rua, as mesmas que há anos ali estão e que juraria estarem sempre a multiplicar-se, dada a dificuldade de as utilizar.

O ar quente da manha já avançada bate-me no rosto, e caminho sem rumo. Vou parando aqui e ali olhando as vitrinas ou cumprimentando alguma conhecida até ao café do Sr. Manuel.

Ao ver-me entrar sorri e pergunta atenciosamente:- O mesmo do costume?

Aceno sorrindo enquanto me dirijo a mesa também do costume como se estivesse reservada sempre para mim.

Vem o chá e a torrada, pão de forma barrada com manteiga e “jam” de cereja, uma atenção de quem me conhece gostos há muito tempo.

Já não uso açúcar devido aos diabetes mas sou incapaz de dispensar o doce na torrada, o que me faz sorrir da “maroteira”.

Passo boa parte da manhã ali sentada, pois sinto-me acompanhada de muita gente que não me conhece mas basta os cumprimentos á chegada para me sentir assim.

Afinal em casa, estou só nem a vizinha do prédio vejo tal a azáfama diária de todos.

O calor aperta e regresso a casa, levando num saco, pão e uns pastéis que entretanto a D.Emilia da padaria me vendeu, será uma das refeições quando o apetite retornar.

Entro em casa, o silêncio atormenta-me e ligo o velho transístor enquanto rodopio pela casa dando um toque aqui outro ali no que estando no seu lugar acho desarrumado.

Por fim sento-me na cadeira de baloiço que propositadamente coloquei em frente á janela de onde vejo o Tejo em todo o seu esplendor, e dormito com a ideia que é o meu Zambeze que me visita diariamente nos meus dias de saudades e me deixa sonhar.

É este o meu mundo.